Vaticínio
('Vaticínio', que o visitante poderá ler abaixo, é um cronicon [novo gênero ou gênero tradicional mas ainda não catalogado pelas teorias de gênero]. É termo cunhado pela escritora paraense Simei Natércia [amiga escritora a quem muito admiro], ao intitular seu livro Kronikon, publicado em 2001, pela editora Scortecci, e que traz um conjunto de crônicas e contos bem interessantes.)
(fotos da web)
Meu nome é Vladimir Pinheiro Kuznetsov e o nome de meu irmão é Dmitri Pinheiro Kuznetsov, mas nossa linhagem russa paterna permanece ainda e somente nos nomes, pois a cultura que nos molda já há algumas gerações é, em tudo, latinoamericana. Apenas uma coisa distingue radicalmente esses dois irmãos: eu sempre quis morrer, ele sempre quis viver.
Às vezes esqueço que me esforço para compreender o desejo imenso que as pessoas nutrem pela manutenção da vida aqui na Terra. Pensava que, por verem sofrimento e sofrerem também, as pessoas aprendiam a desprezar essa ilusória e estúpida existência. Pensava que, como eu, a maioria delas, em algum momento de lucidez, já até pedira perdão a si mesma por ter nascido. Ledo engano o meu. São teimosas ou broncas. Insistem em lutar pela sobrevivência, a despeito de todo o desprezo a que o ser humano está condenado neste getsêmane de cardos e abrolhos. Não falo só dos pobres, dos que passam fome, dos que vivenciam e sobrevivem a guerras, dos que adoecem de enfermidades sem cura, dos que passam longos períodos em prisões. Falo de todos os seres humanos, ricos e pobres, otimistas e pessimistas, livres e operários, saudáveis e doentes, bonitos e feios, infantes e maduros, famosos e anônimos. Todos os que nascem pensam que nem que seja nisto, disputa dos microgametas, foram felizardos, esquecendo-se de que os pais lhes deram a vida para o mundo esfolá-los durante os anos de sobrevivência e matá-los na hora certa, que _ pasme-se _, para a maioria dos que morrem, é hora temporã, é visita infausta vindo sempre antecipada.
Quando eu era menor haviam me ensinado a glamourizar o sofrimento, por isso eu sempre passava por ele incólume e com o mal da alma expurgado. Acreditava que ele me apurava as virtudes, tornando-me uma pessoa melhor, mais compreensiva, mais solidária, mais justa. Fui lesado. O sofrimento só faz a gente ver o quanto a gente não vale nada nessa imensidão cósmica, o quanto o ser humano nada vale para si mesmo e para o outro, parceiros autodestrutivos. Mas alguém ganha e se regozija com toda essa desgracença por certo.
Fico horrorizado com o vício que as pessoas cultivam de preservar sua continuidade na Terra, como se isso fosse grande vantagem. Sujeitam sua descendência a ínfimos e instáveis contentamentos e a uma infinidade de frustrações, dores, desgostos e visões nefastas no planeta. Só Deus sabe o quanto esses infelizes descendentes, condenados a manter as gerações, irão curtir para reparar o atrevimento dos pais em querer se perpetuar sobre a face da Terra. Não é mentira o que um certo Salomão disse: “a maior parte da vida do homem é fadiga e desgosto”.
A impressão que tenho é de que, dentre os jovens, só eu saquei isso fora de tempo. Na velhice, é provável haver maior número de pessoas com essa sacada, mas atualmente elas não se permitem admitir isso para não serem vistas como ingratas pela dádiva (da vida) recebida ou para não serem julgadas pessimistas. A lei e a ordem da esperança vã devem ser mantidas à custa do silêncio de suas reflexões. Não haja circuito propício à verbalização de algo tão absurdamente óbvio e cabeludo. Instaurem-se novos discursos para manter a chama da ilusão juvenil no período de maior afloramento da decadência do Homem. Velhice chame-se “melhor idade”. Aos doentes sem cura, banidos ou não dos hospitais, chamemos de “guerreiros”. Aos injustiçados, de “heróis”. Aos desvalidos, de “a oportunidade de se demonstrar amor a Deus”. À morte, chame-se “caminho natural da vida”, “passagem”, “andar de cima”. Inferno chame-se “apenas palavra de idéia sem fundamento”. E faz-se todo esse jogo de linguagem tendo-se os pés já para além do limiar do inferno, sem querer aceitar que não passamos de Sísifos a rolar a pedra da servidão, da vaidade, da arrogância, da ilusão.
Quem deveria ter morrido primeiro era eu, e não Dmitri Pinheiro Kuznetsov.
by Janete Santos
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