Conheça a coletânea (Di)Versos), obra organizada por Lia Testa (poetisa e docente da área de literatura, na UFT), por mim prefaciada e posfaciada por João de Deus (há uma foto do trio, todos docentes da UFT, mais abaixo). Você pode baixar o PDF do livro gratuito no link abaixo (editora Fi):


http://www.editorafi.org/159lia


Deixo aqui o prefácio (com sugestão de leituras de dois dos poemas da coletânea) para que o(a) leitor(a) possa adiantar um aperitivo da coletânea.



PREFÁCIO

A energia produtiva da poeta Lia Testa é solidária, partilha sonhos diversos e de versos. Sendo laboriosa poetisa _ referência que ela prefere à “poeta”, forma lexical com a qual mais me afino por dar, a meu ver, o mesmo status a poetas de diferentes gêneros (masculino/feminino), é também dedicada a não só conquistar, mas também a formar apreciadores do trabalho criativo da poesia. E nada mais gratificante que, a partir de outro lugar, digo, já na instância de docente, enunciando da posição de professora de um curso de Letras, oportunizar essa experiência (a vivência desse processo) a seus alunos de graduação, tendo como resultado (produto) a presente coletânea, cujo prefácio me coube fazer após convite que muito me honrou. A obra reúne três gêneros literários (poesias, contos e crônicas) produzidos pelos participantes das oficinas do exitoso projeto de escrita criativa, encampado e coordenado por Eliane Cristina Testa, a docente, e temperado em excelente medida pelo vigor criativo de Lia Testa, a poeta (ou a poetisa, como ela prefere).


O volume vem distribuído em seis partes ou seções. A primeira é composta de dez poemas que trazem em si, como fio condutor que enlaça os textos, o sintagma nominal osso côncavo do olho. A segunda, também constituída de dez poemas, traz como proposta de composição a alegoria cobra que morde o rabo, na qual um dos poemas conjuga signo linguístico e não-linguístico. A terceira está organizada por onze haicais. A quarta parte, de dez contos curtos. A quinta, de três crônicas. A sexta, de três poemas livres de eixo temático, com uso no terceiro poema de outros signos que não apenas o linguístico, e mobilizado este tipo somente no título.


Fechando a obra, a sétima e última parte vem composta por imagens resultantes de colagens de figuras outras. Escolhi dois poemas da primeira seção para beliscar a curiosidade do leitor quanto à riqueza das propostas produzidas no exercício criativo do grupo de autores, e da qual o leitor poderá desfrutar ao aceitar o desafio de mergulhar neste trabalho singular, proporcionado pelo projeto de Eliane Cristina Testa.
Em (DI)Versos, osso côncavo do olho é o sintagma que reitera a metáfora a alinhavar os poemas da primeira parte, com o jogo criativo resultando em instigantes imagens ou cenas, a depender de como o leitor “espia” cada texto ou de  como “acompanha” seu movimento, na sua relação com os demais. O modo de sintonia e de bifurcação de sentidos, que aqui gostaria de destacar como exemplificação, é bem representativo entre os poemas de Juliana Sousa Rocha e de Willas Santos, os quais transcrevo para mais abaixo pontuar alguns breves comentários:



Verme Necrófago

À MOÇA VIRGEM

Nasci nesta carcaça
Inquieto.
Dentro do crânio
Putrefação
Passeio pela face do morto.
Encontro-me
Na cavidade do osso côncavo do olho [?]
Então sem pestanejar
Devoro teu globo ocular!

Ouço as ondas do mar
Sinto a brisa a tocar o corpo
E a boca como um beijo!

Moça, ouça a voz do dia
O chamamento para a alegria
Feche os olhos e pule ao mar!

Poço de águas largas!
No teu corpo naufrago-me sem cessar
Roço o osso côncavo do olho
E logo sinto as borbulhas de amar.

Juliana Sousa Rocha
Willas Santos

Em Verme Necrófago, de Juliana Rocha, aberto a outras possíveis leituras evidentemente, temos um poema forte, impactante, e associado ao estilo Augusto dos Anjos, com uma descrição fisiológica de parte do corpo no pós-morte, despida de amenidades, mostrada na sua feição in natura, sem maquiagem de outra ordem ou que remeta à palavra esterilizada para contexto impróprio: Nasci nesta carcaça/Inquieto/Dentro do crânio/Putrefação/Passeio pela face do morto/Encontro-me/Na cavidade do osso côncavo do olho [?]/Então sem pestanejar/Devoro teu globo ocular!. Vê-se aí que a autora comissiona o verme a denunciar-se, narrando as próprias peripécias. E, nesse exercício criativo, a disposição dos signos negritados nos versos (com exceção apenas do terceiro), que compõem o poema de estrofe única (com uma nona, pois não há espaço entre os versos para considerá-lo um poema de nove monósticos, i.e, com nove estrofes de verso único cada), faz emergir refinado oximoro (me olho sem globo ocular) na finalização do micropoema, construído mediante o recurso estilístico do encavalgamento (enjambement), imbricado no macro que o recobre, cutucando o leitor a descobrir que, nessa narratividade em que um ser engole outro, em que um ser depende do outro, tal como todo texto de outro se alimenta, o poema é corpo que a outro aboleta, e neste caso o é para que o sujeito poético, personificado pelo verme, também melhor se descreva, provocando o interlocutor, emocionando-o: Nasci/Inquieto/Putrefação/do morto/me/olho/sem/globo ocular.


Trazemos novamente abaixo o poema de Juliana Sousa Rocha a fim de finalizar um último comentário. Atente o leitor para mais um detalhe na arquitetura do poema: verme move-se por rastejo, fazendo movimento sinuoso que, no poema, pode ser acompanhado pela disposição das palavras negritadas e em desalinho, mais um toque genial deixado pela autora em seu exercício criativo, que anuncia formações discursivas (mobilizadas nesta produção) que a constituem como sujeito inserido no uso heterogêneo da linguagem:




Verme Necrófago

Nasci nesta carcaça
Inquieto.
Dentro do crânio
Putrefação
Passeio pela face do morto.
Encontro-me
Na cavidade do osso côncavo do olho [?]
Então sem pestanejar
Devoro teu globo ocular!

Já em À MOÇA VIRGEM, alinhavando o sintagma  elo (o osso côncavo do olho) entre os poemas da primeira série de textos, mas se distanciando do viés privilegiado por Juliana Rocha, bem como do estilo que remete ao de Augusto do Anjos, a que ela se filiou proposital ou inconscientemente, Willas Santos constrói um poema romântico, navegando em sutil (e também pueril) erotismo poético a chamar a moça (virgem) para entregar-se ao mar (místico), que poderia simbolizar o desejo de conjunção amorosa do sujeito poético, apaixonado e sonhador, e a que o poeta, usando com perspicácia o recurso da exclamação, mobilizando bela metáfora, chama de “poço de águas largas!”. Esse percurso de sentido é sugerido pelo uso de palavras e expressões como corpo, boca, beijo, no teu corpo naufrago, borbulhas de amar, que mobilizam interdiscursos alinhados ao campo semântico proposto por nosso gesto de leitura. Apreciemos mais atentamente a segunda e a terceira estrofes do poema em pauta:

Moça, ouça a voz do dia
O chamamento para a alegria
Feche os olhos e pule ao mar!


Poço de águas largas!
No teu corpo naufrago-me sem cessar
Roço o osso côncavo do olho
E logo sinto as borbulhas de amar


Vê-se que, no poema constituído por três estrofes, especificadas por dois tercetos e por um quarteto, o autor comete um supimpa solavanco semântico na arquitetura do texto (pelo pulo de sentido em um de seus versos), mediante figura de estilo (a metáfora e em forma de exclamação) que lhe permitiu cimentar habilidosamente a cauda de sentido do último verso da segunda estrofe com a mesma laje semântica que ao segundo verso da última estrofe recobre. Ou seja, o sentido de parte do verso anterior estende-se ao verso seguinte, porém, este mesmo “verso seguinte” recobre o sentido do verso posterior, sendo assim tanto uma metáfora do “mar” quanto uma metáfora do “corpo” da virgem. Não chamo de encavalgamento por não localizar o aspecto sintático (ligação lógica e direta de continuidade sintática) como seguramente ocorre no poema em negrito embutido no macropoema de Juliana Rocha, já mencionado anteriormente.



Refiro-me, neste caso, como já sinalizado, ao verso Poço de águas largas!, que, no meu movimento de leitura, tanto alude ao mar (místico), que simbolizaria a conjunção amorosa, ou melhor, o desejo de conjunção amorosa do sujeito poético, constante no verso final da estrofe anterior, quanto ao corpo (da virgem) enunciado no verso seguinte. Ou seja, ao que está referido no segundo verso da última estrofe, que aqui novamente transcrevo: Poço de águas largas!/No teu corpo naufrago-me sem cessar/Roço o osso côncavo do olho/E logo sinto as borbulhas de amar.  É o tipo de verso que poderia por si só constituir uma estrofe independente (um monóstico), configurada entre a segunda e a última, se assim o autor preferisse arriscar.


Uma outra possibilidade de leitura seria ver o “Poço de águas largas!” como um outro ente evocado, com o qual o sujeito poético passa a dialogar (ou monologar) e ao qual  se entrega deliberadamente como faz todo aquele que se atira às águas num abraço confiante, sendo, então, as “borbulhas de amar” uma representação da satisfação pueril de quem se deleita ao mero contato revigorante com a natureza, de quem se diverte desbravando o mar, seja qual for o efeito lírico a ele atribuído. Numa leitura mais superficial, decerto se poderia considerar também que, nos mergulhos, os olhos ardem pela salinidade do mar, daí a necessidade de se roçar o “osso côncavo do olho”. Nesse caso, “as borbulhas de amar” remeteriam ao dito corrente “sofrer no paraíso”, ou seja, à felicidade mesmo que ela traga, como apêndice, algum desconforto. Logo, o diálogo (ou monólogo, pois, à primeira vista, só um toma a palavra e não há a responsividade ativa nos termos bakhtinianos) com a “moça virgem” (ou a tentativa de diálogo) seria apenas um convite despretensioso do sujeito poético para que ela aderisse ao singelo, mesmo que revigorante, prazer de desfrutar da natureza água, porém e ao mesmo tempo, o diálogo com o ente “moça virgem” sofreria um corte brusco, pois se perderia ou se isolaria na segunda estrofe, desenhando-se um tipo de anacoluto entre as vozes do texto, que antes caminhavam em relativa sintonia, pois não se evoca quem não pode “ouvir”, ou, em outras palavras,  quem não estaria disposto a interagir. Mas creio que este percurso de sentido ficaria enfraquecido pelo campo semântico sugerido pelas palavras, expressões e enunciados apontados no parágrafo que inicia a breve análise do respectivo poema, visto que se configuram como palavras e expressões que justificariam a leitura anterior se considerado o percurso integral do poema, incluindo-se aí principalmente seu título, que muito influi no movimento de leitura de qualquer texto desta natureza.


Um outro destaque que se faz notar é a licença poética, ou o efeito da não padronização gramatical quando o poeta evoca a moça virgem, isto é, quando se refere à segunda pessoa do discurso: tu. Os verbos no imperativo estão flexionados à forma gramatical você (Moça, ouça...feche...pule) na segunda estrofe, mas o pronome correspondente “seu”, que, nesse contexto, teria efeito de mais formalidade e mais distanciamento, não é acionado, vindo em seu lugar  a forma linguística “teu” na terceira estrofe, o que poderia ser um reforço para a segunda leitura sugerida. Entanto prefiro tomar essa “escolha” como registro de um uso linguístico mais recorrente, ancorado no hibridismo de uso das formas e flexões gramaticais, mas que não ocorre por acaso (se considerado que o autor, como sujeito  que enuncia de determinada posição, é sempre afetado pelo inconsciente, assim suas “escolhas” linguísticas estão condicionadas por formações discursivas, imaginárias e ideológicas, que não lhe são evidentes mas que produzem seus efeitos ao dar voz ao sujeito poético), pois atende  ao desejo de maior proximidade, ao desejo de uma relação mais intimista (pela quebra, por outro anacoluto, agora da formalidade tecida antes) entre os envolvidos na cena costurada pelo autor do texto.


Confirmando-se a leitura primeira (logo, diluindo-se ou se enfraquecendo a segunda), é ainda interessante destacar, aqui, relativamente à última estrofe, outra bela metáfora emprestada, pode-se dizer, do título da música do cantor romântico brasileiro Fagner: Borbulhas de amor, no qual Willas Santos, como sujeito da linguagem, pondo-a em funcionamento (conforme certa posição teórica sobre linguagem), opera hábil deslocamento da classe gramatical no sintagma preposicionado (de amor) ligado ao sintagma nominal (ou a seu núcleo) borbulhas, trocando a forma substantiva “amor”, que tem efeito de captura de objeto, pela forma verbal “amar”, que tem efeito de captura de processo, de movimento, mantendo o mesmo campo semântico, para completar, porém, e refinadamente, o verso final de seu poema, evocando a ideia do prazer esfuziante e ao mesmo tempo contido de um amor platônico do sujeito lírico, que vive de sonhos, de quimeras, de contemplação, sem a urgência do enlace físico.


Tal configuração remete ao sentido de um amor inclinado à sublimação (a moça do poema é virgem e permanece, no decorrer do texto, intocável, pois o desejo em ebulição é o do poeta e não o dela, digo, não é o mesmo do sujeito desejado, a quem voz não é dada). Por isso, quando o sujeito poético diz: “Roço o osso côncavo do olho”, para, em seguida, confessar: “E logo sinto as borbulhas de amar”, permite ao leitor, também poético, pensar em “sadios distúrbios” que inspiram, que afogam ou liberam a paixão, a emoção, a disposição (produtiva) ao labor da palavra, o desejo do sujeito em seu transe poético e criativo.


O sujeito lírico (ou poético) afoga-se em seu devaneio amoroso, encastelado por suas quimeras. Vítima da não-correspondência implícita do objeto de seu amor platônico, sugerida pelo modo de responsividade de ação retardada (na perspectiva bakhtiniana), “naufraga sem cessar”, pois não desiste jamais de mergulhar nesse sonho, de se arriscar em tentar satisfazer seu desejo, isto é, insiste no suplício de evocar a cumplicidade amorosa da moça virgem, por ansiar pelo objeto de seu desejo, vivenciando metafórica e recorrentemente as “borbulhas de amar”, que sugerem, então, as consequências do “amor a um”, digo, do amor sem a devida reciprocidade.


Este sentido me parece possível, pois o sujeito poético convida a “moça (virgem)” a enveredar pela paixão ou por sua descoberta, a entregar-se ao desejo, pedindo que “pule ao mar”, mas à qual o poema também não dá voz para dizer a sua vontade, por isso duvido do diálogo ao pé da letra e brinco com a possibilidade do monólogo, mesmo que as vozes que constituem o sujeito discursivo imponham o diálogo como inerente ao uso da palavra. Além disso, vale notar que o poema traz o título como início de uma missiva (À MOÇA VIRGEM), indicando o destinatário, o que sugere inicialmente um distanciamento espacial entre os interlocutores criados pelo autor, e vindo em letras garrafais tem efeito de supervalorização, pelo destaque especial que o sujeito poético dá ao objeto de seu desejo, à sua “musa inspiradora”. Entanto esse distanciamento vai se diluindo ao longo do poema, conforme vimos no percurso da breve análise.


Oportuno também considerar, em qualquer gesto de leitura do texto poético, que metáfora não surge do nada, tem relação com o sentido que emerge das ações do homem ou da natureza, pois, se consideradas as estritas relações semânticas entre borbulhas e naufragar, as borbulhas são produzidas geralmente durante a luta pela sobrevivência em ocasião de afogamento, ou quando se respira com equipamento de oxigênio durante mergulhos com ou sem acidentes. Daí se poder deslocar tal imagem para diferentes campos discursivos, ressignificando-se a metáfora para o contexto no qual será empregada.


E como não apreciar a beleza de uma metáfora que remete a um modo outro de dizer também que, ao esfregarmos “as janelas da alma”, roçamos “o osso côncavo do olho”, acionando a maquinaria corporal (como as glândulas lacrimais ali próximas) que nos ensopa e ao mesmo tempo lubrifica e limpa os olhos (ou emoções/sentidos/sensações) com as lágrimas produzidas pela fricção, favorecendo depois quem sabe a serenidade de raciocínio que poderá também serenar (ou mastigas mais ainda) as emoções?! Note-se que as lágrimas possuem um sabor que remete ao da água do mar, pelos sais minerais dos quais comungam, em alguma medida, ambas as matérias.


Antes de finalizar, mais uma provocação ao leitor: desmontando-se a leitura até aqui costurada, de que, ainda no referido texto, o sujeito poético vive o devaneio de um amor platônico, tomando-se à parte especialmente a última estrofe (e o título) do poema com outro olhar, é possível também ler ali uma confissão (cifrada?) de que o desejo do sujeito poético não apenas foi realizado mas também se mantém vivo como uma memória da qual ele não abre mão e a qual quereria pública, entretanto, para não afetar a “reputação da moça virgem (intocada)”, dirige-lhe um poema missiva exaltando, por escrúpulo, a singularidade identitária da qual ela não abre mão. Ou, numa outra hipótese, ainda se poderia  indagar: o uso das letras garrafais, no título, para expressão cândida (desconstruída na última estrofe) irromperia como uma ironia ([in]consciente) do autor ou como uma ironia (consciente?) do próprio sujeito lírico?!


Finalizando-se esse exercício, cabe ressaltar que muitas outras conjecturas se poderiam efetuar diante de tantas possibilidades de gestos de leitura que esta coletânea enseja, e a depender do ponto de observação daquele que sobre os textos se debruça. Por ora, fica esta como um singelo convite ao leitor para que a si mesmo outras também proponha, pois, atentando-se a todos os textos e à conversa entre eles, o leitor verá que, a cada leitura, será recompensado por efeitos de sentidos surpreendentes.



Janete Santos
Escritora e poeta, por inquietação
Janete Silva dos Santos (mestre e doutora em LA, pela Unicamp)
Docente e pesquisadora da UFT, por ofício

Da esquerda para direita: João de Deus, Lia Testa, Janete Santos


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