Um poeta alagoano singular - Homenagem póstuma

(imagem da web)


Um dia com o doutor Murilo Villela ou: visitando ‘justamente’ um homem sedutor

Inicialmente, ele nos mostrou, com muito tato, numa satisfação contagiante, como manipulava a natureza e a seduzia, a fim de ter a presença constante, em sua varanda, de inúmeros passarinhos (en)cantadores. Para quem carregava a fama de conquistador e sedutor de belas mulheres, aquilo era apenas a extensão de sua mania donjuanesca. Semelhantemente ao amparo cavalheiresco que sempre estendeu às suas ex-companheiras, bem como o fazia à sua atual e muito amada esposa, dona Conceição, nos quase cerca de vinte anos de convívio com ela, amparava assim também outras delicadas espécies que, com sua beleza vigorosa, manipulam-no e o subjugavam nesse jogo sutil da sedução, em que são nebulosas as fronteiras da alternância entre caça e caçador. Oferecia-lhes nada menos que um bosque em seu quintal, bem nutrido de harmonia verde, entremeada com o colorido que só tal viço faz prosperar.

Os peixinhos fritos que nos ofereceu como petiscos antes do almoço, a serem saboreados da cabeça aos limites da crocante calda, foram pescados por ele mesmo, e pareciam desenhados à mão, tal a simetria refletida na bandeja.

O que mais me atraiu a atenção, porém, foram as pedrinhas que ele catava no rio de Tocantinópolis, durante suas meditações aquáticas, na companhia de sua embarcação preservada com muito capricho. Ele se entregava candidamente a um laborlazer só compreendido com o devido respeito, na sua dimensão de ócio criativo, por poetas ou amantes desta arte inútil e deliciosamente gratificante que é a poesia: ele também era poeta em prosa e em versos.

Ao rememorar o modo como ele explanava sobre a forma das pequeninas contas de rocha, justificando sua preferência pelas mais esféricas e mais bem esculpidas pelas águas ora escandalosas, ora soturnas daquele rio, só me vem à mente o redondo e bem lapidado senso de justiça que animou este, já saudoso, homem-poeta durante sua vida toda: abdicou da maior parte de seus bens em favor dos menos afortunados, e dedicou-se de corpo e alma à arte do socorro ao próximo. Mais que ser um mero bom médico em horário de expediente, vivia a medicina em tempo integral, pagando, muitas vezes, inclusive os remédios que fornecia aos mais açoitados pelas escandalosas chibatadas da falta de oportunidade na vida ou pelas soturnas opções que esta lhes oferecia.

Ao fazer o balanço de nossas vidas e ao cotejar o quantitativo de pessoas ilustres que conhecemos, o mais relevante, para uma mentalidade não cauterizada, é poder contabilizar, dentre estas, pessoas justas ou com notável senso de justiça (como doutor Murilo), que iluminaram nossa experiência terrena, em meio a tantas arrogantes vaidades que muitas vezes nos embaraçam o entendimento.


Janete Santos

membro da ACALANTO
professora adjunta do curso de Letras da UFT
Nota:

O médico, escrivinhador e poeta Murilo Vilela, sobrinho do ex-senador Teotônio Vilela/AL, desprezou o convite feito pelo tio para assumir posições confortáveis em Brasília. Doou a fazenda recebida como herança dos pais, no interior do estado de Alagoas, aos trabalhadores rurais sem-terra que lá habitavam (seus empregados), pois, segundo ele mesmo fazia questão de justificar, tinha com que ganhar a vida (era médico) e aquelas pessoas tinham arrematado bem menos dela (da vida). Como médico reconhecidamente solidário, atuou por décadas com sua medicina no interior (extremo Norte) do estado do Tocantins (Tocantinópolis), com a preocupação maior de cuidar dos doentes com indiscutível dedicação, sem discriminação, independente das condições financeiras que estes tivessem. Uma das últimas mostras do desprendimento que lhe era peculiar foi que, após sua morte em 19 de maio de 2011, ao se fazer o levantamento dos poucos bens que ainda possuía, descobriu-se que a clínica que ele havia comprado de outro médico, e onde atendia quem tinha condições de pagar e quem também não tinha, ainda não havia sido passada oficialmente para seu próprio nome. Por sorte, ou por justiça para com a memória de um homem que soube valorizar tal prática, o médico que lhe vendeu a clínica ainda vive e não se negou a oficializar na justiça o negócio fechado havia anos, coisa de gente "das antigas", para quem a palavra oral tem o mesmo, ou até mais, peso que a palavra escrita.

Murilo era cronista, contista, poeta cordelista, repentista, sonetista, modernista etc., mas deixou apenas um livro (em prosa) poético publicado. A ACALANTO, academia de Letras local da qual fazia parte, prepara, na pessoa dedicada de um de seus idealizadores/fundadores e atual vice-presidente, José Francisco Concesso, uma obra a ser publicada em breve, com dados biográficos e parte dos escritos avulsos dessa bela pessoa (Murilo Vilela) que, pela convivência, aprendemos a admirar. E julgamos uma pena o Brasil, na sua vasta extensão, não ter tomado conhecimento de sua existência.

Caso julguem relevante esta pequena homenagem, ajudem a divulgá-la Brasil afora.

by Janete Santos




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